Ela conhece o mundo a partir da fresta da janela de sua casa. Desde as primeiras horas do dia, lá estava aqueles olhos esbugalhados, observando os passos, as vozes e o fluxo de gente. Olhava tudo minuciosamente, fazia amizades através de seu esconderijo. Uma mente pouco compreendida!
Creio que assim como eu, para tia Lene, o céu, o bailar das estrelas, a devoção, os causos e prosas, as festividades e os mistérios da calada da noite sempre foram fascinantes.
Tia Lene não tem vaidades, sempre levou uma vida simples, sua casa era cheia de crendices e muitos mistérios, mas quando a festa do Divino se aproximava, o seu semblante mudava, ficava feliz e emotiva. Era a primeira moradora da rua de Conquista a enfeitar a janela de sua casa para receber o Divino.
Uma mulher frágil que costuma molhar o estandarte com suas lágrimas, e esperançosa, alimenta a sua fé no aguardo do ano seguinte, para exaltar a bandeira.
Nós últimos anos, ela escolheu o sofá da casa de meus pais para assistir o novenário. Costuma rezar com muita fé, rir, segura a sua bandeirinha com a imagem de uma pomba e ama as procissões.
Já faz alguns meses que minha tia está doente, muito debilitada, Ela já não sabe o que anda ocorrendo nos primeiros raios de Sol, a janela de sua casa vive fechada, sua voz anda fragilizada, e seus olhos já não tem mais o mesmo brilho.
Brevemente, ela deverá fazer sua passagem e se juntará a um coro de devotos do Divino. Cantará as ladainhas que tanto gosta ao lado de minha avó, a matriarca que costurou uma infinidade de bandeiras, que mesmo após perder a visão, nunca esqueceu das cores e do bailar das bandeiras, muito menos da beleza que é ter fé. O ser misterioso da rua de Conquista poderá contemplar os mistérios visto de uma outra dimensão.
Desejei e continuo a desejar que esse ser tão enigmático consiga aproveitar mais um pouquinho de sua existência, e como sempre fez em seus quase setenta anos, no alvorecer da sexta-feira da chegada das bandeiras, a zelosa fiel, com sua mão frágil e com os olhos de quem tem sede de viver, consiga abraçar, beijar e agradecer por nunca lhe faltar a fé, pois sempre acreditou que esse sentimento deva ser infinito e que entre os que partem e os que ficam, sempre existirá algo para celebrar e agradecer. A tristeza e dor, em algum momento, será apenas saudade.
Que o Divino continue abençoando a cidade, e que o seu hino ecoe pelos lares, seja fonte de acalento principalmente para os desacreditados. A bandeira seguirá em frente, espalhando esperança, costurando feridas, amenizando dores, e alegrando o seu povo. As casas já estão enfeitadas, a cidade tem cheiro de festa e de maçã do amor. As cores, as formas, barracas e muita expectativa por mais uma chegada do anfitrião.
Obrigada por sempre voltar, querido Divino!
Texto: Su Ferraz.